Por Tiago Antoniolli*
Artigo publicado na Gazeta do Povo
“Ainda não superamos no Brasil o preconceito contra a iniciativa privada”, declarou Luís Roberto Barroso, presidente do STF, em abril deste ano. Barroso também disse que “nós ainda somos viciados em Estado”. A frase faz referência a uma tensão histórica entre o Estado brasileiro e os empreendedores, um conflito que remonta ao passado imperial, além de refletir um contraste marcante com nações mais exitosas quando o assunto é industrialização e empreendedorismo, como os Estados Unidos.
Isso fica evidente quando comparamos a vida de Irineu Evangelista de Sousa (o Barão de Mauá) e Robert Morris (um dos Founding Fathers americanos). Ambos compartilharam inícios de vida similares e desafiadores, ambos marcados por origens humildes, abandono dos pais e a necessidade de trabalhar desde a infância. Mauá iniciou sua carreira aos 11 anos de idade, enquanto Morris, aos 13. Os dois emergiram como figuras centrais no comércio de seus respectivos países, construindo vastos impérios empresariais que influenciaram fortemente as respectivas economias e desenvolvimento de suas nações. Suas interações com os governos de seus países, todavia, seguiram caminhos opostos.
Mauá foi uma força motriz na industrialização do Brasil no século XIX, criando empresas nos setores metalúrgico, de transporte ferroviário e fluvial, bancário, de iluminação pública, de comércio internacional e agrícola. Apesar de apelidado de “Empresário do Império” pelo autor de sua biografia, Jorge Caldeira, Mauá sofreu nas mãos da elite aristocrática que governava o Império brasileiro na época, em especial do próprio imperador Dom Pedro II.
Legislação e regulação adversas, restrições a investimento estrangeiro em sua firma e favorecimento a concorrentes aliados politicamente ao imperador foram apenas alguns dos obstáculos colocados pelo Império no caminho de Mauá, mas não foram os principais. Dentre os maiores ataques contra o empreendedor se destacam a estatização do Banco do Brasil e a indecorosa concorrência de Dom Pedro II às linhas ferroviárias de Mauá.
Embora a grande maioria das pessoas não saiba, o Banco do Brasil foi criado pela iniciativa privada, pelo Barão de Mauá. Houve um primeiro Banco do Brasil, criado em 1808 por Dom João VI, mas, com seu retorno à Lisboa em 1821, o rei português levou consigo boa parte dos recursos do banco, culminando em sua liquidação oito anos depois. Foi apenas em 1851 que o banco foi recriado por Mauá como um banco privado, com o intuito de financiar seus empreendimentos e tentar modernizar a estrutura financeira do país, concedendo acesso mais abrangente ao crédito que poderia impulsionar a industrialização e a infraestrutura em um Brasil no qual o crédito era praticamente inexistente.
Em 1853, porém, o governo imperial decidiu estatizar o Banco do Brasil, pois queria ter maior controle sobre as políticas monetárias e de crédito. A estatização retirou de Mauá a capacidade de financiar suas próprias iniciativas empresariais e reduziu sua influência no cenário econômico brasileiro. O banco estatizado passou a funcionar como um braço financeiro do governo, o que praticamente inviabilizou a disponibilidade de crédito para empreendimentos privados que não fossem dos “amigos do rei”.
Na realidade, os congressistas estavam acostumados a receber gordos juros remuneratórios sobre seu capital, que normalmente emprestavam a fazendeiros para comprarem mão-de-obra escrava. O tráfico de escravos estava sendo lentamente proibido devido à pressão exercida pelos ingleses, mas ainda assim os membros do congresso ficavam extremamente incomodados com os empréstimos a juros baixos do Banco do Brasil de Mauá para iniciativas produtivas. Assim, os governantes decidiram acabar com a brincadeira, e o Brasil, em um ciclo aparentemente eterno, sempre volta a ser o famigerado “paraíso dos rentistas”.
A concorrência do Império às linhas ferroviárias de Mauá é mais um grande exemplo de um governo extremamente centralizador que impediu que a livre iniciativa melhorasse a infraestrutura no Brasil. Mauá, tendo viajado à Inglaterra e presenciado o potencial das ferrovias para modernizar o transporte e destravar o crescimento econômico, começou a construir ferrovias no Brasil. Inaugurou a primeira ferrovia do país em 1854, a Estrada de Ferro Mauá, ligando a Baía de Guanabara ao sopé da Serra de Petrópolis.
No entanto, o governo imperial tinha outros planos para a expansão ferroviária, que incluíam o controle total do Estado sobre a infraestrutura ferroviária do país. Frequentemente, os projetos estatais previam ferrovias em rotas exatamente iguais às de Mauá, com o objetivo de dividir o tráfego nas ferrovias do empresário e torná-las menos rentáveis. Além disso, Mauá lutava contra armadilhas regulatórias impostas pelo governo, como a dificuldade na concessão de permissões necessárias para a viabilização das linhas, e a dificuldade em acesso ao crédito – agora controlado pelo próprio governo.
Em contraste à história de Mauá, nos Estados Unidos, Robert Morris não apenas encontrou um ambiente de apoio aos seus empreendimentos, como também foi convidado a se juntar ao incipiente governo americano como forma de reconhecimento de suas façanhas empresariais no comércio, navegação e outras atividades mercantis.
Ele acabou entrando para a história como um dos Founding Fathers, que eram eminentes representantes das 13 colônias americanas originais que planejaram a Independência Americana e a criação da Constituição dos Estados Unidos.
Além de Morris, outros Founding Fathers incluíam George Washington, Benjamin Franklin, Thomas Jefferson, Alexander Hamilton e John Adams. A constituição que criaram, e que vigora até hoje, é um pilar fundamental do sucesso dos Estados Unidos, favorecendo um sistema que valoriza e promove o empreendedorismo e tira o peso do Leviatã estatal dos ombros dos contribuintes. Morris contribuiu significativamente para o financiamento da revolução, inclusive comprometendo suas finanças pessoais para fazê-lo. Por isso, é considerado o arquiteto financeiro da revolução americana, o que lhe rendeu o apelido de “The Financier” (o financiador).
É comum ouvirmos falar dos grandes empresários que criaram suas fortunas nos Estados Unidos: Ford, Rockefeller, Carnegie e, mais recentemente, Elon Musk, Steve Jobs, Bill Gates e afins. O que não é tão comum é ouvirmos falar dos grandes empresários brasileiros. Algum gaiato pode até mesmo dizer que “é porque não temos nenhum”, mas a história não é bem assim, pois aqui já tivemos um magnata capaz de criar bancos de extensão nacional, iluminar a capital do país e riscar o território brasileiro com ferrovias.
Os Estados Unidos foram construídos sobre uma base meritocrática, a qual incentiva e celebra o empresário americano. No Brasil, o sucesso normalmente atrai mais ceticismo e resistência do que apoio. A desconfiança do lucro e do sucesso reflete uma visão mais ampla que ainda permeia muitos aspectos da cultura e política brasileiras. Há uma tensão contínua na história econômica brasileira entre o desenvolvimento impulsionado pelo Estado e o crescimento orientado pelo mercado. Sim, “nós ainda somos viciados em Estado”, como disse Barroso. Não cultuamos nossas grandes figuras empreendedoras, mas elas definitivamente existem. E a esperança de um Brasil melhor passa pelas mãos das futuras gerações empreendedoras. O estudo Global Entrepreneurship Report (2022) deixa claro: o Brasil continua a ser o único país da América Latina onde o maior sonho da juventude é se tornar empreendedor, com 60% dos entrevistados citando ter uma empresa como um dos seus maiores desejos.
Uma sociedade construída sobre valores meritocráticos não apenas prospera economicamente, mas também cultiva líderes e visionários que podem enfrentar os desafios globais, como os Founding Fathers. Reconhecer e apoiar o potencial empreendedor dos nossos futuros “Mauás” pode ser a chave para desbloquear um futuro de inovação e prosperidade no qual o Brasil concretizará seu pleno potencial no cenário global.
*Tiago Antoniolli, associado do IFL-SP, é formado em Administração de Empresas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul com extensão pela UCLouvain, na Bélgica.