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Morte e impostos (?): O Estado moderno e Aquela fortaleza medonha

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* Por José Freire Nunes

Atribui-se a Benjamin Franklin o adágio Tudo na vida é incerto com exceção da morte e dos impostos.

Embora a existência de algum tipo de governo seja axiomática para muitos cientistas políticos, vale a pena fazer a mesma pergunta de Robert Nozick em seu livro Estado, Anarquia e Utopia (1974): Por que não a anarquia?[1]

Segundo Eric Voegelin, um fundamentalista é uma pessoa que acredita em palavras independentemente do que elas signifiquem. A utilização de frases prontas e lugares comuns em larga escala na mídia sem a reflexão do significado desses símbolos verbais é fonte de uma série de confusões mentais que dificultam a análise objetiva de fenômenos sociais.

O economista e filósofo político Murray Rothbard chama atenção para isso no seu ensaio A Anatomia do Estado (1974)[2]; Rothbard critica o uso de termos coletivos como “nação” e “estado” de forma a diluir a individualidade da pessoa numa massa amorfa despersonalizada; lança-se mão desse artifício para ocultar a culpa por algum crime perpetrado por agentes estatais – como o Holocausto – e para camuflar uma realidade acessível a todo observador atento: “nós” não somos o estado; o governo não somos “nós”.[3]

Por exemplo: o governo de Getúlio Vargas lançou na década de 50 a campanha “O petróleo é nosso!”. Colocando de lado o fervor ufanista, o que de fato se quer dizer com “O petróleo é nosso”? De quem especificamente? Da União? Do presidente e de seus ministros? Como a coletividade do povo brasileiro pode exercer aquilo inerente ao direito de propriedade (usar, fruir e dispor)?

Rothbard continua sua crítica à inevitabilidade da existência do estado valendo-se da diferenciação estabelecida pelo sociólogo alemão Franz Oppenheimer entre “meio econômico” e “meio político”.

Uma vez que o ser humano nasce carente dos meios para sua subsistência, ele precisa encontrar formas para obter da natureza os recursos para sobreviver. Nesse processo, ele se vale da sua engenhosidade para prover seu próprio sustento por meio da produção e do comércio.

Nisso consiste o meio econômico de se adquirir riqueza.

Contrariamente, o “meio político” de aquisição de riqueza envolve o confisco de propriedade, o uso da força. Esse é o meio por excelência do qual se vale o estado; talvez por isso Max Weber definiu que o Estado é uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território.[4]

Apesar dessa dicotomia entre meio econômico e meio político, existe uma realidade obscurecida por essa diferenciação.

Como aludido acima, o homem nasce incapaz de prover sua subsistência. Embora a produção e o comércio sejam meios de se adquirir riqueza, o homem apenas consegue se valer do meio econômico pelo fato de nascer numa família.

Indivíduos somente são capazes de se desenvolverem plenamente uma vez inseridos num contexto familiar de acolhimento e amparo, este por sua vez sustentando por uma sociedade que ofereça serviços de saneamento, segurança, transporte etc.

A frase Tudo na vida é incerto com exceção da morte e dos impostos estaria melhor formulada se enunciasse que Tudo na vida é incerto com exceção da morte e da família. A família está presente em todas as culturas de todas as épocas. Assim, pode-se dizer que a família é algo natural, inerente à própria estrutura da realidade social.

Uma vez que a existência da família é universal e que ela é a primeira instituição com a qual um indivíduo trava contato, é na família que primeiro surge a questão da autoridade, tanto quem deve exercê-la, no que ela consiste e como exercê-la.

Esse tópico é explorado por Orestes Brownson em seu livro The American Republic (1865).

Segundo Brownson, as principais características da autoridade no âmbito familiar é que ela foi exercida historicamente de maneira patriarcal e pessoal; ou seja, o pai era a figura que exercia autoridade sobre a família e essa autoridade era circunscrita a seus membros. Trata-se aqui de um vínculo sanguíneo, pessoal. Aquilo que legitima o exercício da autoridade é a própria posição de provedor e protetor ocupada pelo pai na dinâmica familiar.

Entretanto, a questão da legitimidade para se exercer autoridade surge quando um conjunto de famílias precisa interagir umas com as outras. Quem terá autoridade para governar as famílias? Essa é a questão prática que se apresenta na história humana.

Uma série de critérios surgiram para decidir quem tem autoridade para governar: a idade, a posição hierárquica, a vontade dos deuses etc.

Embora o exercício da força seja uma variável importante, ele por si só não legitima uma autoridade. Afinal, ainda que um grupo detenha o monopólio do exercício da força, observa-se historicamente a tentativa de todo regime encontrar alguma legitimidade, algum tipo de apoio E esse apoio, vale observar, não precisa ser um entusiasmo ativo; pode ser uma resignação passiva, como se se tratasse de uma lei inevitável da natureza.[5]

Por exemplo: no Antigo Testamento é recorrente a tentativa de reis buscarem a sua legitimidade por meio do apoio dos profetas. O caso mais emblemático é a unção de Davi pelo profeta Samuel.

Se a autoridade patriarcal se exerce de maneira pessoal, como se dá a transição de uma autoridade patriarcal exercida no âmbito familiar para uma na sociedade?

Essa passagem se dá com a introdução do território. Com o território, exerce-se a autoridade não mais de maneira pessoal sobre os membros de uma família, mas sobre todas as pessoas que se encontrem no território, sejam elas estrangeiras ou não; daí o surgimento da diferenciação entre ius civile – direito aplicado aos cidadãos romanos – e ius gentium – direito aplicado aos estrangeiros – no Direito Romano.

Com o território, surgem questões referentes ao conjunto de regras que governarão uma dada sociedade – direito – e a qualidade de que gozarão os habitantes daquele território – cidadania.

Tamanha é a importância do território que, não à toa, parte considerável da história do povo hebreu está centrada na busca por um território para os descendentes das 12 tribos constituírem seu país e terem um lugar fixo para adorar Iaweh.

Esse processo de transição de uma autoridade patriarcal e pessoal para outra civil e impessoal é um fenômeno natural, inerente à estrutura da realidade, que apresenta estágios mais ou menos desenvolvidos na história de um povo a depender de seus usos, costumes e tradições.

Durante a Revolução Americana, uma das ideias repetidas era a de que o governo seria um governo de leis, não de homens. Essa ideia reflete uma sociedade que já atingira na época um profundo grau de cultura cívica e republicana.

Entretanto, diferentemente do que se nota nessa transição, o surgimento do estado moderno se deu de forma distinta.

O estado moderno surgiu na Europa no início da Idade Moderna com uma finalidade específica: cessar as guerras religiosas entre católicos e protestantes que assolavam o continente há décadas. A ideia era criar uma instituição que se sobrepusesse às dissenções religiosas e a qual todos aqueles que professassem o credo que fosse deveriam se submeter.

Esse processo foi selado em 1648 com a Paz de Westphalia.

O pensador mais célebre desse período que influenciou muitos dos que o sucederam foi o inglês Thomas Hobbes com seu livro Leviatã (1651).

Nele, Hobbes delineia a sua antropologia filosófica e lança mão de um artifício abstrato: o contato social. Segundo Hobbes, no estado de natureza, os homens estão imersos em conflitos constantes entre si. Cansados do conflito, os homens se reúnem e decidem renunciar a liberdades disfrutadas no estado de natureza e entregá-las ao estado – por meio de um contato social – cuja função seria manter a paz e a ordem entre os homens.

Apesar das inúmeras críticas que podem ser atribuídas à visão hobbesiana, na prática, Hobbes acabou oferecendo uma fundamentação para o surgimento do estado moderno e para os meios coercitivos empregados por ele para manter a ordem social.

Menos de três séculos depois, Hannah Arendt dissecou as causas e fundamentos do estado nazista e soviético, cunhando o termo totalitarismo em seu livro As Origens do Totalitarismo (1953) para descrever o fenômeno inédito na história de uma autoridade governamental buscar englobar a totalidade da vida social com mecanismos de controle e propaganda.

Não por acaso surgem no século XX distopias como 1984, Aquela Coisa Medonha, Senhor do Mundo e Admirável Mundo Novo, que retratam os impactos do crescimento do poder estatal naquelas sociedades fictícias nas quais o constitucionalismo e o direito natural tornaram-se itens de antiquário.

Talvez o mais assustador deste início de século XXI seja que a realidade está ficando mais parecida com as distopias do século XX.

Na Aquela Coisa Medonha, C.S Lewis retrata os planos da organização N.I.C.E (National Institute of Co-Ordinated Experiments) em instituir um estado totalitário no qual as decisões seriam tomadas por um conselho de cientistas capacitados a decidirem tecnicamente acerca do futuro de seus cidadãos.

Não há um paralelo entre o que se passa na Aquela Coisa Medonha e o cenário atual da COVID-19?

Segundo Murray Rothbard:

Na nossa atual e mais secular época, o direito divino do estado foi suplantado pela invocação de um novo Deus, a Ciência. O governo estatal é agora proclamado como ultracientífico, como constituído por um painel de especialistas. Mas mesmo com a “razão” sendo mais invocada hoje do que em séculos passados, essa não é a verdadeira razão do indivíduo e do exercício do seu livre arbítrio; é ainda a razão coletivista e determinista, que implica sempre agregados holísticos e a manipulação coerciva de súditos passivos feita pelos seus governantes.

Muitos setores da sociedade advogam que as decisões a serem tomadas para combater a COVID-19 devem ser “científicas”, objetivas, sem nenhuma influência política.

Contudo, esquecem-se de que toda ideologia quer ganhar para si a alcunha de “científica” por conta do prestígio que a ciência goza na sociedade contemporânea. O racismo, o comunismo, o nazismo, a eugenia foram em algum momento considerados “científicos”.  

Esquecem-se de que muitos utilizam o termo “ciência” de maneira fundamentalista: sem conhecer o seu real significado. A ciência não tem autoridade para ser um conhecimento dogmático, assim como bem ilustra Sir Karl Popper no livro A Lógica da Descoberta Científica (1959).

Segundo Popper, o elemento que diferencia o conhecimento científico dos demais é que aquele é falseável: a afirmação Todos os cisnes são brancos pode ser falseada de duas formas: confirmando-se que todos os cisnes são de fato brancos ou buscando por um cisne negro.

A ideia de identificar todos os cisnes do mundo para constatar a cor de sua pelejam é contraproducente. Assim, Popper conclui que buscar pelo cisne negro é um meio mais eficiente, visto que ao encontrar um único cisne negro a afirmação Todos os cisnes são brancos já está falseada. Ou seja, o mais produtivo é buscar a negação, não a confirmação de uma teoria.  

Para Popper, essa anedota exemplifica como o conhecimento científico deve se desenvolver: as hipóteses científicas deve ser constantemente submetida a testes de falseamento.

Pela própria natureza do objeto de estudo da ciência e pelo método dessa, o conhecimento científico jamais terá autoridade dogmática para guiar infalivelmente políticas públicas.

Não deveria ser nenhuma surpresa os dissensos científicos em torno da eficácia do uso da aplicação da cloroquina, do uso de máscaras e de lock-downs para proteger as pessoas contra a COVID-19.

O que é digno de espanto é a dureza das medidas adotadas diante da carência de fatos a respeito da natureza do vírus, da forma como ele se propaga, dos meios de contágio etc.

Parecem proféticas as palavras escritas por C.S Lewis 1958:

A nova oligarquia deve confiar cada vez mais nas recomendações dos cientistas até que, no final, os políticos se tornem meros fantoches dos cientistas. A tecnocracia é a forma para a qual uma sociedade planejada deve tender. Eu desgosto de especialistas no poder porque são especialistas falando fora de sua área de expertise. Deixe os cientistas nos falarem sobre ciência. Mas o governo envolve questões sobre o bem para o homem e a justiça, e quais coisas valem a pena ter e a que preço; e sobre isso o treinamento científico de nada serve para um homem tomar uma decisão. Deixe o médico me dizer que morrerei a menos que faça isso e aquilo; mas se vale a pena ter a vida nesses termos não é uma questão mais para ele do que para qualquer outro homem.[6]

Retornando à pergunta de Nozick então: por que não a anarquia? Para não incorrer em fundamentalismos, é necessário dissecar o conceito de “anarquia”.

Se por “anarquia” entende-se a busca por suprimir o exercício de qualquer tipo de autoridade, essa tentativa é logicamente impossível e ela acarretará consequências catastróficas para uma sociedade, desembocando no tribalismo mais pérfido ilustrado por Rothbard no caso da Ruritânia do Sul.[7]

Entretanto, se por “anarquia” entende-se uma ordem política descentralizada e policêntrica, esse parece ser o arranjo no qual a liberdade e a ordem estão mais bem preservadas. Talvez Voltaire tivesse isso em vista quando afirmou que, ao cavalgar a passeio pela França, a lei das províncias pelas quais passava mudavam com mais frequência do que sua montaria. 

Muitas inovações institucionais se deram historicamente num contexto de ausência do paradigma do estado moderno, como o surgimento dos títulos de crédito na península itálica e os princípios do direito internacional na Idade Média.

Quanto mais passa o tempo, mais parece que o estado moderno é de fato, pegando emprestadas as palavras de C.S Lewis, uma coisa medonha; quanto mais seria um governo mundial não representativo que tomasse decisões exclusivamente técnicas a respeito de quantos filhos um casal pode ter, onde cada pessoa vai morar, o tipo de conteúdo permitido a ser veiculada nas redes sociais etc.

Assim, as palavras de Benjamin Constant soam tão verdadeiras hoje como no século XIX: Que l’autorité se borne à être juste, nous nous chargerons d’être heureux”.[8]

 

 

Notas do Autor:

[1] Robert Nozick (1938-2002) foi um filósofo americano e professor das universidades de Princeton e Harvard. Ele se tornou amplamente conhecido no mundo acadêmico em 1974 com o lançamento de seu livro Anarquia, Estado e Utopia. Nesse livro, Nozick advoga por um governo constitucional e limitado a funções de proteger a vida, liberdade e propriedade dos cidadãos contra agressão interna ou externa. A íntegra da Anarquia, Estado e Utopia está disponível na versão PDF no seguinte link: https://antilogicalism.files.wordpress.com/2018/04/anarchy-state-utopia.pdf

[2] A íntegra do ensaio encontra-se disponível no seguinte link: http://rothbardbrasil.com/wp-content/uploads/2015/10/A-anatomia-do-estado.pdf

[3] ROTHBARD, Murray. A Anatomia do Estado. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises. Brasil, 2012. p. 8

[4] Esse conceito é posto por Weber em sua conferência Política como Vocação (1919).

[5] ROTHBARD, Murray. A Anatomia do Estado. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises. Brasil, 2012. p. 15

[6] LEWIS.C.S. Willing Slaves of the Welfare State. Is Progress Possible? (1958). Publicado pela primeira vez na data de 20 de julho de 1958 no The Observer.

[7] ROTHBARD, Murray. A Anatomia do Estado. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises. Brasil, 2012. p. 14: Um dos métodos de nascimento de um estado pode ser ilustrado como se segue: nas colinas da “Ruritânia do Sul”, um grupo de bandidos organiza-se de modo a obter o controle físico de um determinado território. Cumprida a missão, o chefe dos bandidos autoproclama-se “Rei do estado soberano e independente da Ruritânia do Sul”. E se ele e os seus homens tiverem a força para manter este domínio durante o tempo suficiente, pasmem!, um novo estado acabou de se juntar à “família das nações”, e aqueles que antes eram meros líderes de bandidos acabaram se transformando na nobreza legítima do reino.

[8] Que a autoridade se ocupe a ser justa, nós nos encarregaremos com sermos felizes. Tradução livre.

 

Fonte: Morte e impostos (?): O Estado moderno e Aquela fortaleza medonha