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Essa tal liberdade

Campanha da gripe encerra em dez dias; 232 mil pessoas ainda não compareceram

* Por Márcio Ramos

Nas últimas semanas, durante a transição do presidente e do Congresso dos Estados Unidos, acompanhamos uma série de eventos alarmantes, com destaque para dois: a invasão do Capitólio e o bloqueio das contas de Donald Trump nas principais mídias sociais.

Tal como é de se esperar em uma sociedade com liberdade de pensamento e expressão, dois eventos grandiosos e simbólicos como esses não passariam batido e, de lá para cá, acompanhamos diversas figuras influentes declarando seus posicionamentos em relação aos episódios.

Em tempos de polarização, nunca é demais lembrar que é impossível responder questões complexas de forma simplista, de modo que o que se propõe, a seguir, não é a defesa de um posicionamento específico, mas, acima de tudo, a defesa do exercício da liberdade com responsabilidade. Voltemos aos episódios em questão.

Sobre a invasão do Capitólio, conhecemos a justificativa. Trata-se da sociedade civil exercendo os direitos que lhe garante a Primeira Emenda, a saber: “O Congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações de queixas”. Segundo esse argumento, o exercício desse direito deveria ser louvado, porque as pessoas que invadiram o Capitólio estariam denunciando uma possível fraude eleitoral, ou seja, eram defensoras da Constituição e da democracia. Será?

A população americana tem o direito constitucional da liberdade de reunião, como manifestações políticas, e o direito de petição, como pedir algo ao governo sem punição ou retaliação. Além disso, a Primeira Emenda garante que ambos os direitos sejam respeitados, textualmente, pelo Congresso. Porém, os direitos são garantidos contanto que os requisitos da forma sejam cumpridos: tanto petição quanto reuniões precisam ser pacíficas. O vandalismo à propriedade pública ou privada continua sendo ilegal e sujeito a punição pela lei. Quanto à invasão do Capitólio, fica claro que é condenável, mas e a petição?

É possível inferir que todos os que se envolveram nessa mobilização não o fizeram em uníssono, mas um dos pedidos oficialmente declarados ao Congresso era a rejeição da vitória do presidente eleito Joe Biden. Sobre essa demanda, é importante destacar que nem o Congresso, nem o vice-presidente que preside este processo têm o poder de rejeitar ou mudar o resultado de uma eleição. Seus poderes são restritos a aprovar ou reprovar a contagem dos votos dos colégios eleitorais dos diferentes estados. De fato, este poder foi exercido nas eleições de 2020 em que as contagens de alguns estados foram contestadas, como Arizona e Pennsylvania, mas foram posteriormente aprovadas em votação nas duas casas do Congresso, que conta com representantes de ambos os partidos, como manda a regra do jogo.

Temos então um processo eleitoral aprovado pelos estados, pelo sistema judiciário e inclusive pelo Supremo, em resposta às objeções levantadas por Trump e sua equipe e finalmente pelo Congresso, através da contagem e validação final dos votos. Esse processo pode ser questionado? Sim, a Primeira Emenda garante isso. Mas sob qual pretexto? Sem qualquer evidência que corrobore com esse questionamento, toda essa mobilização é improcedente e nada mais do que isso.

Sobre a suspensão da conta de Trump pelo Twitter e outras redes sociais também sabemos qual é o argumento. Segundo pronunciamentos oficiais dessas mídias sociais “(…) Nós suspendemos a conta permanentemente devido ao risco de maior incitação à violência”, isso em um momento particularmente tenso em que seus partidários invadiam o Capitólio. Aqui, há duas questões discutíveis: o que é liberdade de expressão (e, portanto, o que é censura) e o que nos parece, enquanto sociedade, correto do ponto de vista moral.

A liberdade de expressão, dentro do contexto dos EUA, é a liberdade de um indivíduo se expressar sem interferência do governo. E a censura, de acordo com a Constituição, é o ato do governo limitar ou inibir a liberdade de expressão. Ayn Rand detalha: “Censura” é um termo pertencente somente às ações governamentais. Nenhuma ação privada pode ser considerada censura. Nenhum indivíduo ou agência particular pode silenciar um homem ou impedir uma publicação; somente o governo pode fazê-lo”. A liberdade de expressão dos indivíduos inclui o direito de não concordar, não ouvir e não financiar os seus próprios antagonistas”. Isto posto, fica evidente que a suspensão da conta de Donald Trump não configura, de forma alguma, uma ação de censura. Mas, consideramos isso correto?

Se apelarmos ao pretexto declarado pelas próprias empresas privadas que decidiram, dentro do seu domínio, bloquear as contas de Trump, podemos rapidamente questionar: por que Donald Trump e não Nicolás Maduro ou Aiatolá Khomeini? O código de conduta dessas redes não condena a existência desses perfis e das mensagens que veiculam?

É claro que essa pergunta é apenas uma provocação, porque sua intenção é meramente expor essas empresas à contradição de seus próprios valores buscando revelar, em última instância, suas verdadeiras motivações. E quais seriam elas? Basta dizer que a suspensão de Trump aconteceu dias depois da aprovação do Joe Biden como presidente, que também confirmava uma maioria democrata no senado, dado que o voto de desempate é da vice-presidente e lembrar as inúmeras vezes que estas empresas sofreram ameaças de mudanças de legislação, que poderiam ter impactos trilionários no setor, por parte dos líderes do partido democrata. Cancelar o ex-presidente republicano nesse momento parece apenas coerente com esse contexto.

Mas Trump não foi a única vítima de cancelamento, o que endossa a preocupação em torno do que julgamos moralmente correto. A empresa Parler, uma mídia social auto-declarada “neutra” do ponto de vista político, foi banida da Apple Store e da Google Play, e a Amazon retirou a hospedagem do aplicativo dos seus servidores. A justificativa foi que a Parler, diferentemente das outras empresas, não se posicionou contra o ex-presidente ou seus partidários que invadiam o Capitólio.

Podemos ter a impressão de que as mídias sociais possuem um grande poder, que as empresas que formam o “Big Tech” são, de fato, o big brother a que se refere Orwell, mas basta coçar os olhos para ver mais nitidamente. Ao clamarmos por intervenções, ao louvarmos cancelamentos de qualquer ordem, estamos voluntariamente cedendo poder a algo que já é maior do que deveria: o Estado. Se permitimos que ele dê todas as regras, não resta nada além de submissão às empresas e aos civis. Interessantemente, o exemplo da Parler ilustra esse poder sendo exercido de uma forma questionável ao mesmo tempo em que reforça o que nos parece uma ponta de esperança: embora o Estado seja grande, ele ainda não é absoluto. Em uma demonstração emblemática da autorregulação do mercado, a Parler simplesmente encontrou outro servidor para hospedar seus serviços. Claro que nada disso foi feito por mero afronte ao poder, o que reforça ainda mais a supremacia do livre mercado — demanda e oferta naturalmente pautando o que deve existir e o que não. E se havia alguma dúvida sobre essa demanda, ela não existe mais. Pergunte ao Parlor, o quase homônimo do Parler que, do dia para noite, passou de alguns milhares de downloads para o ranking dos aplicativos mais baixados nos Estados Unidos.

Se não queremos ser vigiados, é imprescindível que sejamos vigilantes, e que possamos dar um passo além dos nossos primeiros impulsos para perceber que o que está em jogo, nesse momento, é a essência da liberdade — não apenas de livre expressão contra um governo que julgamos ilegal ou contra um governante atroz nas mídias sociais.

* Márcio Ramos é graduado em comunicação social com ênfase em marketing pela ESPM-SP e Presidente do Instituto de Formação de Líderes de São Paulo (IFL)

Fonte: Essa tal liberdade